segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O Último Prato

Sim, é mais uma história. Sim, é do Malba Tahan. Não, não estou em crise. Apenas extremamente atarefado.

Enjoy!


A travessia do deserto do Shomer é longa, fatigante e perigosa. Bem sei, ó irmão dos árabes! Não importa, Alá é grande! Afrontemos todas as fadigas e perigos para que possamos chegar, com nossas caravanas, à famosa cidade de El-Riad, no coração ardente da Arábia.

Três são as maravilhas que o viajante deverá admirar quando repousar entre os muros pardacentos de El-Riad. Ressalta, em primeiro lugar, formosa e inesquecível mesquita de Feisul (Alá a nobilite e a engrandeça cada vez mais!), feita de mármore preto com cinco mil e três arabescos em losangos vermelhos. Não menos admirável é o jardim das Sete Tamareiras, onde é cultivada uma planta rara e singular, denominada madjid, que não pode existir em outro clima. A flor avermelhada da madjid irradia, durante a noite, uma claridade tênue, balsâmica, que deslumbra os homens mais indiferentes aos aspectos fabulosos ou artísticos da natureza.
A terceira maravilha de El-Riad é a figura inconfundível do xeque Navedin Abdel-Latif.

Manda a justiça que o nome desse generoso muçulmano seja escrito, com a ponta de uma agulha, nos olhos castanhos de uma borboleta.

Essa homenagem dirá do valor do xeque muito mais do que todos os elogios que fossem aqui escritos, repetidos e sublinhados. Basta dizer que o grande Navedin Abdel-Latif (sobre ele a paz de Alá!) tinha a preocupação elegante e patriótica de hospedar principescamente, em seu palácio, todos os viajantes ilustres que chegavam a El-Riad.

Quis o destino que eu pudesse, certa vez, salvar o xeque de um embaraço muito sério.

Quer ouvir o caso?

Vou contá-lo:

Recebera o xeque, naquele dia, em sua casa, a visita de quatro mercadores que se achavam de viagem para a baía de Bahraim, que é, aliás, uma grande feira para o comércio de pérolas.

Poucos momentos antes do jantar, a residência do xeque foi inesperadamente invadida por cinco indivíduos, incorrigíveis parasitas, que pretendiam encher a insaciável pança à custa do bondoso hospedeiro de El-Riad.

O xeque ficou admiradíssimo quando os viu recusando os
assados, os pastéis, a empada e até o
peixe em molho de manteiga.

Os manjares preparados não seriam suficientes para atender aos hóspedes da casa e aos intrusos de última hora. Expulsá-los do palácio seria medida pouco hábil; uma cena violenta, naquela ocasião, iria causar impressão desagradável aos nossos visitantes.

Apelei para o recurso de um estratagema, que pus em prática sem hesitações pueris.

Procurei aproximar-me discretamente dos parasitas e disse a cada um deles (sem que os outros percebessem), em tom muito confidencial:

- Espere pelo último prato! É uma iguaria digna do paladar de Maomé! Imagine só: miúdos de crocodilo, com vinho de Chipre e azeitonas gregas!

Veio o primeiro prato - uma ótima fritada de carneiro. Os parasitas recusaram, fingindo-se indispostos. Não lhes apetecia o carneiro, pois pretendiam reservar a capacidade integral do estômago insaciável para os tais miúdos de crocodilo com azeitonas gregas. A mesma coisa aconteceu com os delicados manjares que se seguiram.

O xeque, que ignorava o motivo da incrível abstinência dos parasitas, ficou admiradíssimo quando os viu recusando os assados, os pastéis, as empadas e até o peixe em molho de manteiga.

E, afinal, o jantar terminou; os nossos hóspedes foram servidos fartamente, enquanto os indesejáveis intrusos, em jejum voluntário, aguardavam, com ares de abstração palerma, o maravilhoso prato prometido, que nunca mais apareceu.

Não vale a pena, meu amigo, fazer comparações; detesto os confrontos, que só servem para realçar os contrastes. Mas asseguro que muitos homens (à semelhança dos parasitas a que me referi) passam a vida em permanente jejum, na esperança vã de um sonho que nunca se realiza - ou melhor, de um prato que nunca aparece. Sacrificam a mocidade, deixam rolar o tempo e chegam, por fim, à velhice, aguardando uma iguaria que só pode existir na imaginação dos imbecis e dos famélicos: miúdos de crocodilo, com vinho de Chipre e azeitonas gregas!

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